Metadesign e Meta-aprendizagem: da estética ao cosmo.

Caio Vassão
24 min readMar 14, 2022

--

Esse é o primeiro texto da série “Metadesign e Meta-aprendizagem” em que apresento os conceitos, técnicas e métodos que desenvolvi na relação entre metadesign e processos de ensino-aprendizagem — aplicáveis tanto para escolas e instituições de ensino, como para a cultura das organizações, empresas e instituições governamentais.

Nesta série de textos, apresento o modelo que desenvolvi para compreender o que é aprendizagem e como funciona a educação segundo princípios do Metadesign e sua aplicação em projetos de “Meta-aprendizagem”.

Mas, o que é “Meta-aprendizagem”?

É o ato de construir, intencionalmente, as condições para que se possa aprender — sozinho, com outras pessoas, em instituições ou organizações, em comunidades, na sociedade.

Nesse primeiro texto, apresento um modelo geral para compreender o processo de ensino e aprendizagem, o usando para fundamentar uma hipótese sobre o porque as escolas tradicionais têm tanta dificuldade em engajar o interesse dos alunos — e o que podemos fazer a respeito disso.

Aprender é fundamental e inevitável.

Muitas vezes, achamos que aprender é uma obrigação chata. Por que? Já que, na verdade, adoramos aprender…

Aprender é uma atividade excitante, constante, inevitável.

Por outro lado, quando aprisionamos a educação em instituições baseadas em modelos restritivos e baseados no controle, fica difícil estimular a curiosidade dos aprendizes.

Veremos adiante porque as escolas preferem esses modelos.

Além disso, pode parecer que aprender é um atividade solitária, mas sempre aprendemos no coletivo: mesmo as pessoas que aprendem individualmente, os “autodidatas”, estão sempre imersas na sociedade e nas organizações; por sua vez, essas estão imersas em um ecossistema. Todo esse conjunto (pessoas, sociedade e ecossistema) é capaz de aprender, construindo novas capacidades de entendimento e ação, criando coisas novas e atuando de novas maneiras.

A cultura evolui como parte de um ecossistema: aprendemos o tempo todo, junto com todo mundo, cada um à sua maneira, cada um em seu lugar em uma rede que é o ecossistema.

O artista em seu ateliê (Jackson Pollock): o artista co-evolui com sua obra e seu ambiente de trabalho. Podemos dizer que seu trabalho evolui do mesmo modo que um ecossistema na natureza: enquanto interagem constantemente entre si, todas as partes do ecossistema (ou do atelier/obra do artista) evoluem como parte desse todo — ninguém evolui sozinho. Essa "evolução" é o processo de aprendizagem do ecossistema — como veremos adiante. (Imagens: Hans Namuth, Jackson Pollock — Number 11, 1952.)

Educação, aprendizagem, sociedade e inovação, ecossistema e evolução.

Algumas definições:

“Aprendizagem” é um aspecto fundamental da nossa vida mental: aprendemos desde que nascemos, e assim vamos pela vida toda.

Por outro lado, “Educação” é um ato intencional de induzir ou convidar ao processo de aprendizagem: convidar, conduzir, forçar ou direcionar esse processo — assim como variam os contextos em que isso acontece: na instituição, na família, na organização ou em uma empresa.

Aprendizagem é uma atividade constante: aprendemos com tudo que está a nossa volta, as coisas boas e ruins, as simples e as complexas, nas relações sociais, na leitura de autores mortos, observando a natureza e as outras pessoas, zapeando na internet ou lendo um relatório técnico, jogando no celular ou computador, brincando na rua, batendo papo...

Educação é um movimento intencional que fazemos em coletividade: quer seja como aprendizes ou como educadores, em instituições, na família ou nas organizações. De modo aparentemente isolado (sozinho lendo em seu quarto), ou na interação com vastas sociedades (na internet, por exemplo). Mas, mesmo a leitura solitária é uma interação social: lemos as palavras de um autor que pode estar morto, interagindo em uma sociedade que transcende o tempo e o espaço, da antiguidade aos dias de hoje.

Na Meta-aprendizagem, o educador também é um aprendiz: segundo o minha abordagem para a meta-aprendizagem, para que o educador possa educar, de fato, precisa também aprender nesse processo: é necessário que haja uma auto-transformação do educador para que ele consiga alcançar o processo de aprendizagem de quem aprende sob sua tutela ou cuidados, ser capaz de andar junto com quem conta com seu auxílio ou liderança.

Os papéis de educador e aprendiz precisam dialogar, se sobrepor, confundir e até mesmo trocar de ladoaprendizes que educam, educadores que aprendem.

Aquilo que chamamos de “inovação”, em qualquer contexto, é o processo de aprendizagem da sociedade: o processo de inventar coisas novas e adotá-las em nossas vidas induzem a sociedade a desenvolver novas práticas, hábitos, novos modos de viver — o “processo de inovação” impele as pessoas e a sociedade a se transformarem, aprendendo um novo ver o mundo e a realidade. A sociedade se transforma porque inventa coisas novas e depois aprende a lidar com elas. Ou seja, o processo de inovação é um processo de aprendizagem.

Aquilo que chamamos de “evolução”, tanto na natureza como na sociedade humana, é o processo de aprendizagem do ecossistema: no ecossistema natural, assim como nos ecossistemas sociais-humanos, a transformação é inevitável — mas ela não é aleatória, é a soma das aprendizagens individuais e das sociedades que o compõem. Quando o ecossistema aprende algo novo, chamamos isso de “evolução”.

Ponderando sobre essas relações entre indivíduo, sociedade e ecossistema, o que podemos propor como ações educacionais? Até onde vai o alcance das nossas ações de ensino e aprendizagem? Podemos promover aprendizagem, ou podemos apenas convidar à aprendizagem?

Há, de fato, alguma diferença fundamental entre aprendizagem do indivíduo, da sociedade e do ecossistema, ou trata-se apenas uma questão de escala e de complexidade?

Educação e Aprendizagem: paixão ou amolação?

Podemos aprender a partir de nossa própria curiosidade, ou porque achamos que é nossa obrigação.

Podemos aprender com entusiasmo, ou de saco cheio.

Mas é comum associarmos as palavras “educação” e “aprendizagem” a instituições de ensino, e as palavras “curiosidade” e “entusiasmo” a atividades que nos dão prazer. E, para muita gente, não há relação alguma entre as duas coisas.

Será que poderíamos aprender sempre com curiosidade e entusiasmo?

Nossa curiosidade sempre nos leva a aprender coisas novas, a vida toda. Quando encontramos um assunto que nos fascina, ficamos lendo até de madrugada, fuçamos até esgotar o assunto. Mesmo que seja algo que outras pessoas acham sem interesse ou inútil.

Por outro lado, quando nos inscrevemos em um curso, ou somos “obrigados a ler um livro”, é muito comum que a curiosidade desapareça, e a gente passa a agir como um funcionário obrigado a trabalhar com o que não gosta.

É bom lembrar que todos os assuntos que aparecem no ensino médio, por exemplo— da física à literatura, da geografia à história clássica— foram, algum dia, objeto de profunda paixão de alguém.

Então, como é possível que, para muitos aprendizes, esses temas pareçam “pasteurizados”, sem graça, ou mesmo incompreensíveis?

Como é possível que a matemáticafonte inesgotável de belezas e maravilhas — seja, na escola, um tema árido, hostil, fonte de lembranças de ódio e desprezo, medo e desespero? (Especialmente, na véspera da prova…)

A proporção "áurea" e suas manifestações na natureza: à esquerda, a expressão matemática, a partir do "retângulo áureo"; no centro, o padrão de crescimento em um girassol, que procede segundo a proporção áurea; à direita, um raio-x da concha de um nautilus. (Abdul Conrad; Remi Jouan; William A. Conklin.) Quantas pessoas abandonaram a matemática sentindo-se intimidadas pela "gíria" da notação matemática, sem ver a beleza ali oculta?

Como é possível que tantos temas profundamente úteis — como a aplicação de ciência e tecnologia na indústria e na sociedade — sejam vistos por tanta gente como “coisas inúteis”, pouco mais que um obstáculo no caminho para a obtenção de um diploma ou titulação?

Poderia ser por “falta de inteligência” dos aprendizes ou dos professores? Será que há temas complexos demais, que não podem ser aprendidos por todas as pessoas? Ou será que há algo ao mesmo tempo mais simples e profundo em jogo? Algo que podemos compreender e fazer diferente?

Veremos adiante porque é tão comum que as instituições de ensino destruam tanta beleza em nome da eficiência…

Interação Social e Exploração para Inovação.

Como diria Vygotsky, aprendemos em sociedade: aprendemos uns com os outros e com o ambiente que nos cerca, imersos na incessante interação social. Freire nos diria que é por meio da aprendizagem em interação que construímos nossa participação política em um grupo social: não aprendemos sozinhos, e sim interagindo na coletividade.

Mas e os autodidatas?

Não se engane: ler um livro escrito por um filósofo da antiguidade também é interação social, mesmo que limitada à mão única da leitura. É mais fácil compreender o autodidata como um aprendiz auto-dirigido do que como um ermitão isolado.

Mas e as pessoas que aprendem com a natureza?

Ué, nossa sociedade pode se estender além dos limites convencionais: interagimos também com a natureza — na verdade, a natureza é parte da sociedade, e vice-versa. E não é isso que os cientistas fazem, ao interagir com a natureza para obter evidências empíricas?

O aspecto fundamental da aprendizagem, segundo Piaget, Vygotsky e tantos outros, como Fröbel e Freire, é o processo de experimentação: ver a vida como um laboratório.

Piaget nos diria que a aprendizagem não é uma coisa passiva: aprendemos por meio da interação porque a “ação de aprender” é uma continua atividade de lançar hipóteses e testá-las em nossa interação com o mundo: “será que, se eu fizer isso, vai acontecer aquilo?”. Quando erramos, cogitamos outra hipótese de ação. Para aprender, agimos de um modo muito parecido com o processo científico: como diria Buckminster Fuller, somos cientistas desde a infância.

Do mesmo modo, a teoria do “Pensamento Selvagem”, de Levi-Strauss, compreende o mesmo: os povos originários, indígenas, aborígenes, das florestas, savanas, desertos e oceanos, pensam como cientistas, lançam hipóteses e experimentam no ambiente em que vivem.

Uma mulher Bajau em seu "barco-casa", no mar as Filipinas; um homem Yanomami, explorando a floresta; uma gravura feita por um Inuit ("esquimó"), relatando o mundo em que vive (James Morgan; Nigel Dickinson/WWF; Kananaginak/The Inuit World). A relação destes povos com seu ambiente é complexa e profunda, envolvendo um processo contínuo de aprendizagem. Levi-Strauss percebeu que eles produzem taxonomias com mais frequência e proficiência que os povos ditos "civilizados".

Para se ter ideia do alcance e relevância das ideias desses educadores, como Piaget e Vygotsky, é interessante saber que a chamada “Interface Gráfica do Usuário” (GUI) foi criada com base nos princípios cognitivos e sócio-interacionais desses, e outros, autores da pedagogia e dos processos de aprendizagem.

Por que isso é relevante? Porque as GUIs são o ambiente onde muitos de nós passamos o dia todo trabalhando, são os ambientes de interação computacional em que se usa mouse, ícones, menus e janelas, são os sistemas operacionais como Windows e MacOS, dentre outros.

Eu chamo as GUIs de “interfaces de pedagógicas”: elas funcionam porque são intrinsecamente ambientes de aprendizagem.

Para se ver o alcance disso, é bom saber que o principal motivo pelo qual existe todo o ciclo de inovação em computação pessoal que conhecemos tão bem — da Internet/Web até smartphones , start-ups e mega-corporações globais, como Facebook, Amazon e Google — é porque desde a década de 1980 gerações inteiras de programadores, designers e empreendedores tiraram proveito de uma inovação baseada em princípios educacionais que foi desenvolvida no meio acadêmico e em institutos de pesquisa durante as décadas anteriores.

Gerações de programadores, inovadores e “startapeiros” exploram um vasto ambiente que foi inaugurado pela aplicação de princípios pedagógicos à tecnologia digital, transformando todos os aspectos da vida contemporânea — a chamada “Transformação Digital”.

Os três momentos decisivos da criação, desenvolvimento e popularização da Interface Gráfica do Usuário (GUI): sua origem em Stanford, sob a liderança de Douglas Engelbart; sua transformação em um paradigma robusto e funcional para computação pessoal no Xerox/PARC, sob a liderança de Alan Kay; e a apropriação que a Apple fez desse desenvolvimento, propondo um item de consumo de massa, o primeiro Macintosh. (Douglas Engelbart/SRI International; Alan Kay/Xerox PARC; Apple Computer.) Pouca gente sabe que Alan Kay, força motriz no desenvolvimento dos GUIs na Xerox, baseou a parte mais importante do seu trabalho — o paradigma cognitivo das GUIs– em Vygotsky e Piaget. A GUI não é uma "interface intuitiva", como se falava na época. Ela é uma interface "pedagógica", permeável às tentativas de aprendizagem de seus usuários. A popularidade das GUIs — do Mac ao Windows, e tantos outros — é fruto da sua qualidade pedagógica.

Ou seja, na vida dos povos em simbiose com a natureza ou no cotidiano tecnológico urbano, viver é aprender.

Um Modelo de Aprendizagem: Meta-Aprendizagem.

Ao longo dos anos, desenvolvi uma abordagem para compreender e atuar em educação/aprendizagem que chamo de “Meta-Aprendizagem”. A construí para lidar com o processo de aprendizagem em diversos contextos:

  • nas instituições formais de ensino (universidades, escolas, ensino fundamental, médio e superior, etc.)
  • nas instituições e organizações em geral (empresas públicas e privadas, associações, cooperativas, departamentos de empresas, ONGs e OSCIPs, governo, etc.),
  • e também para compreender a inovação como um processo geral de aprendizagem.

Existem outras abordagens também chamadas de Meta-Aprendizagem desenvolvidas anteriormente. São abordagens relacionadas à chamada Meta-cognição, e são fundamentais para diversos modelos de ensino e aprendizagem contemporâneos.

Além das referências usuais e reconhecidas em educação — como as citadas acima — minha abordagem teve uma origem diferente, baseada no Metadesign, com influência da filosofia contemporânea, estudos de complexidade, antropologia estruturalista, cibernética, pensamento crítico, fenomenologia, teoria do projeto e da arte, dentre outras referências.

Mas, além das referências teóricas, minha abordagem se desenvolveu em muitas horas de sala de aula, e também atuando como facilitador em processos de inovação organizacional e aprendizagem institucional.

Tive oportunidade de contribuir diretamente para numerosos projetos educacionais em ensino superior e médio, atuando nas mais diversas capacidades como educador e gestão de serviços educacionais.

Assim, há algumas novidades em minha abordagem, em relação às outras abordagens de Meta-aprendizagem.

Meta-aprendizagem na prática: da estética ao cosmo.

Para pensar e desenhar experiências de aprendizagem, minha abordagem da Meta-Aprendizagem se organiza em uma sequência de atitudes que o aprendiz desenvolve em relação ao processo de aprendizagem.

— .. — .. —

Estética

Essa sequência se inicia com sua imersão sensorial no ambiente, na vivência concreta do tema ou contexto que está interessando ao aprendiz.

Um exemplo: para aprender a surfar, o aprendiz tenta pegar onda sobre uma prancha ou “pegar jacaré”, toma caldos, quase se afoga, tenta de novo, fica íntimo dos movimentos das águas; até que começa a compreender, com o corpo, o que é surfar.

Esse primeiro momento é Estético, ou seja, baseado na percepção, na experiência em primeira pessoa do que se está aprendendo.

A experiência estética é o início da experiência de aprendizagem. É como começamos a compreender as coisas e mundo: tentando fazer sentido das coisas com o corpo. (Imagens: Anestiev; Mike Baird; Stux.)

Nesse momento, não há ainda a capacidade de elaborar verbalmente o que se está vivendo. É a vivência concreta das coisas no mundo, com o corpo e todo o aparelho sensorial.

É assim que o tema em questão — neste caso, surfar — aparece para a aprendiz. Não como um conceito abstrato, mas sim como um fato concreto que ela sente no corpo como um todo.

— .. — .. —

Ontologia

A sequência continua com a tentativa de elaborar verbalmente o que se experienciou no momento anterior.

A gente conta para amigos e familiares o que vivenciou, as sensações, as dificuldades, os sucessos, o que compõe aquela experiência — a prancha, a onda, o swell, o equilíbrio, o caldo, nadar, remar, etc.

Constrói-se vocabulário a respeito dessa experiência. Em geral, também aprende-se ainda mais coisas nas conversas com pessoas mais experientes compreendendo e adotando o vocabulário que já utilizam, e assim conseguindo elaborar ainda mais a experiência que vivenciou.

Bater um papo é sempre elaborar nossa experiência do mundo. Falamos para elaborar o que estamos vivendo e sentindo. E, assim, construímos vocabulário e categorias de entendimento, permitindo a abstração. Sempre por meio da linguagem. (Imagem: MemoryCatcher.)

Esse segundo momento é experiência Ontológica de aprendizagem.

Ontologia é um aspecto fundamental da filosofia e, portanto, de toda produção de conhecimento. É, literalmente, “falar sobre os entes”, falar sobre o que existe no mundo, definir categorias, vocabulário e construções linguísticas que possam expressar esse conjunto de coisas que existem à nossa volta.

Falar sobre nossas experiências é crucial para que elas sejam elaboradas de modo mais avançado, para que possamos ir além da percepção, da estética, da vivência no corpo, e sejamos capazes de construir conceitos abstratos por meio da linguagem.

Na linguagem, somos capazes de construir uma rede compartilhada de conceitos e ideias que podem circular pela sociedade, e assim configuram um conhecimento que está vivo além de nossa percepção concreta — pessoal e singular — de como o mundo funciona.

— .. — .. —

Taxonomia

O terceiro momento acontece quando já estamos bastante habituados à experiência (estética) de um tema ou área de conhecimento, e também já conversamos bastante e com muitas outras pessoas a respeito dessas experiências, construindo um domínio abstrato (ontológico) por meio da linguagem desse conhecimento, e estamos prontos para elaborar conhecimento sistematizado a respeito do assunto.

Há um corpo de conhecimento sistematizado sobre o Surf, como ondas se formam, sua anatomia, como projetar e construir pranchas, etc. Esse é um conhecimento técnico e científico, são afirmações precisas, sintéticas e "diretas ao ponto", sem rodeios. A experiência taxonômica é focada e lógica, utiliza dispositivos visuais e linguísticos precisos e úteis. Muitas vezes incompreensíveis para quem não adentrou essa terceira etapa da aprendizagem. (Imagens: "Mecanismo Miles-Philips para a formação de ondas" — Seung Joon Yang; "Anatomia de uma onda"– San Diego Surf School; Projetos de diferentes tipos de pranchas de surf.)

Esse terceiro momento é a experiência Taxonômica da aprendizagem.

A taxonomia é uma ferramenta poderosa para construir compreensão do mundo. Taxis significa “classe” ou “ordem”, no sentido de “classificação”, organização e ordenamento; nomos significa organização ou arranjo. A taxonomia é, em um sentido estrito e fechado, um sistema de classificação. Mas, em um sentido mais amplo, é a base do conhecimento científico e um auxiliar fundamental para a filosofia.

Com a taxonomia, construímos conhecimento preciso e sintético. Com as categorias que construímos ali, podemos articular modelos que descrevem os mais variados aspectos do mundo: como a sociedade funciona, como a economia funciona, como as empresas e organizações funcionam, como a física funciona, como a biologia funciona e todas as outras ciências descrevem o mundo.

A taxonomia organiza um conjunto coeso e sistemático de conhecimento de modo direcionado e priorizado. É a experiência intencional de organizar o mundo, propor e implementar ações de modo econômico e consequente.

Muitas vezes, digo que “a taxonomia é como um bisturi para fazer cirurgias em ontologias”: partindo da linguagem e vocabulário que construímos na experiência ontológica, ela permite que a gente organize nossa concepção de mundo, e também transforme essa concepção de um modo relativamente rápido e, mesmo assim, sempre profundo.

No entanto, por mais potente e, por isso mesmo, sedutora que seja a experiência taxonômica do conhecimento, ela não é o ponto final nessa jornada de aprendizagem.

— .. — .. —

Cosmologia

Após termos experienciado uma realidade (estética), e termos conversado e elaborado nossas percepções em linguagem que pode ser compartilhada (ontologia), e termos organizado uma visão sistemática daquele conhecimento (taxonomia), percebemos que cada um desses momentos tem um papel importante e recorrente para continuarmos a aprender de modo contínuo, sempre procurando por uma compreensão mais profunda e mais ampla do mundo. Essa percepção nos ajuda perceber que a taxonomia, em toda sua potência, oferece um modelo útil, mas não absoluto, para compreender o mundo. E podemos ir adiante.

O quarto momento da sequência desse processo é a experiência Cosmológica de aprendizagem.

Voltando ao exemplo do surf: na experiência cosmológica, o surfista percebe que há o momento de mergulhar na onda sem pensar muito (estética); há o momento de compartilhar o que sentiu, o que acha que aconteceu, o que poderia ter feito de diferente, como as outras pessoas pensam sobre o tema (ontologia); e ainda há o momento de sistematizar o conhecimento, ordenar uma coleção de conhecimentos claros e diretivos sobre o que aprendeu (taxonomia).

Mas que, na verdade, nenhum desses pontos de vista, sozinhos, dá conta do que é a aprendizagem. Precisamos oscilar entre esses pontos de vista de acordo com as necessidades de quem aprende, e com as oportunidades que se revelam no processo.

Uma surfista no tubo de uma onda (Stephanie Gilmore, ESPN). O momento cosmológico não é exatamente o momento da "alta-performance", mas sim aquele em que percebemos que podemos compreender as coisas de diversos pontos de vista. Cada um desses pontos de vista, se construído com dedicação e cuidado, oferece uma perspectiva única que dialoga com outras perspectivas.

O termo “cosmologia” se refere a uma visão de mundo, e a experiência cosmológica da aprendizagem vai além das separações entre a experiência concreta (estética), a elaboração verbal aberta (ontologia), e a sistematização do conhecimento (taxonomia). Ela convida a uma experiência de “trânsito” entre esses momentos. Convida a compreender que cada ponto de vista tem seu valor, e que o conhecimento mais profundo (e amplo) está no “espaço entre as coisas”, e não nas coisas em si, vistas de modo isolado.

Em outras palavras, o ponto de vista cosmológico nos convida a compreender a relação entre as coisas, e não apenas as coisas em si.

Saber transitar entre pontos de vista diferentes é uma capacidade que se desenvolve gradualmente, e conseguimos assumir essa posição quando estamos tranquilos quanto às diferenças entre esses pontos de vista, sem tentar resolver as discrepâncias que necessariamente existem entre todas essas diferenças, e aceitamos que o conhecimento está na sobreposição de conceitos diferentes, não em UM único conceito, ou UM único sistema taxonômico, para nortear nossas compreensões e ações.

E O T C — da percepção ao cosmo.

As relações entre esses quatro momentos — as experiências estética (E), ontológica (O), taxonômica (T) e cosmológica (C) da aprendizagem — são dinâmicas e complexas.

A sequência que apresentei indica um processo idealizado, portanto, ele pode não acontecer dessa maneira exata, e sim de um modo menos linear, mais orgânico, espontâneo, oscilando de modo não-linear entre as diferentes experiências de aprendizagem.

Mas, há algo importante nessa sequência: ao tentar compreender algum assunto, é importante começar nos conectando a ele de modo estético, sem julgamentos, sem a necessidade de já saber o que falar ou como falar sobre esse assunto, sem sentir a obrigação de repetir algum modelo explicativo pronto e acabado que tenha sido apresentando a nós.

Só depois dessa imersão na situação concreta é que faz sentido falar sobre o assunto, a partir do que foi vivido, e assim elaborar vocabulário e linguagem. Ter a experiência ontológica daquele tema.

E só após termos explorado intensamente a linguagem e a capacidade de abstrair ontologias é que podemos construir modelos de explicação, sistematizações e priorizações, na experiência taxonômica do tema.

Para superar a rigidez desse momento taxonômico, precisamos nos entregar a um campo de entendimento cosmológico, que permite compreender as relações múltiplas e complexas, paradoxais e contraditórias, entre os diversos modelos sintéticos. Nesse campo expandido da experiência cosmológica podemos ir além do inevitável reducionismo da taxonomia.

E, a partir da visão cosmológica do processo de aprendizagem, fica mais fácil perceber como podemos oscilar entre os quatro momentos de modo consciente e intencional.

As diferentes experiências na aprendizagem: estética, ontológica, taxonômica e cosmológica. Desenvolvi o modelo que apelidei de "EOTC" para identificar os diferentes modos de aprender e para indicar que o trânsito entre eles é a capacidade mais importante para um processo de aprendizagem orgânico e efetivo. (Caio Vassão/Bootstrap.)

Em resumo

  • Estética: vivenciar situações novas, aprender com o corpo, com a percepção, de modo solitário ou coletivamente, participar de modo corpóreo e visceral nas situações concretas, sem preocupar-se com denominações, nomenclatura e vocabulário.
  • Ontologia: usar a linguagem para compartilhar experiências, construir vocabulário compartilhado, criar nomes e designações, participar de um coletivo para debater o que se aceita como “real” em um determinado contexto social e cultural.
  • Taxonomia: sistematizar conhecimento, criar sistemas de pensamento e ação, produzir modelos sintéticos, obras de arte e exercitar a criatividade de modo estruturado, consequente e relevante.
  • Cosmologia: superar os modelos e pensar além de sistemas estáticos, ver o espaço entre os sistemas e modelos, aprender em comunidade, ter segurança e autonomia para liderar processos de aprendizagem de modo flexível e inclusivo, reconhecer cada momento anterior (estético, ontológico, taxonômico) e seu papel nas jornadas de aprendizagem.

A experiência taxonômica de aprendizagem e seu papel no sistema tradicional de ensino.

A atividade de construir, ajustar, desenvolver, criticar e rever taxonomias é a ferramenta fundamental para compreender o mundo de modo científico. Além disso, produzimos obras de arte por meio da afirmação de uma realidade como a vemos, como a afirmação de um modelo sintético — nossa expressão desenvolvida, enfática e sumária.

A taxonomia nos permite projetar e criar de modo intencional, delimitando de maneira sintética e resumida nossas intenções, modos e métodos de ação, tempos e cronogramas, prioridades e sequências de ação.

Assim, a taxonomia é também o campo em que a arte opera: criando direcionadores claros para nossa intenção criadora — direcionando a percepção das pessoas e do próprio artista.

Por isso, a taxonomia também é fundamental para afirmar novas realidades, as afirmações por meio das quais é feita a arte: uma obra de arte é um sistema coerente de interrelações.

A diferença entre arte e ciência não é tão grande assim (discuto isso neste outro artigo). Afinal de contas, um “modelo científico” é, ele próprio, uma obra de arte.

Arte e ciência são produtos sintéticos e potentes, “resumos do mundo”: uma visão clara, compartilhável e expressiva.

Por causa dessa potência toda, a experiência taxonômica do conhecimento e da aprendizagem é muito sedutora, pois ela parece ser um retrato fiel e poderoso do mundo, um retrato muito preciso, utilizável e aplicável.

Parece que a taxonomia dá conta de tudo.

Mas isso não é verdade. Ela não é O retrato fiel do mundo, e sim o retrato fiel de UM MODO específico de compreender o mundo, construído cuidadosamente por uma pessoa ou grupo de pessoas.

À medida que transitamos da experiência estética da aprendizagem para a experiência ontológica e chegamos à experiência taxonômica, parece que, nesse terceiro momento, tudo se organiza de um modo tão sintético, explícito e diretivo, que parece desnecessário passar pelas etapas de aprendizagem anteriores (estética e ontologia). Como achamos que a taxonomia dá conta de tudo, muitas vezes acreditamos que não precisamos das outras atitudes da aprendizagem — sentir o mundo (estética), ponderar sobre o mundo (ontologia) e reconhecer suas ambiguidades e contradições (cosmologia).

Mas, isso é uma ilusão: todo conhecimento é incompleto, precário, falível e circunscrito a um contexto histórico, cultural e social específico e, por isso mesmo, pode e deve ser questionado. E a taxonomia é uma visão acabada, “pronta para consumo”, avessa à crítica e à ambiguidade.

Dois mapas-mundi diferentes: à esquerda, uma "projeção de Mercator", o método mais comumente utilizado para mapas do nosso planeta— orientou as grandes navegações e o processo de colonização eurocêntrica. À direita, a "projeção Dymaxion", criada por Buckminster Fuller; nessa projeção, o norte não vemos a cosmologia usual da projeção Mercator: norte "para cima", sul "para baixo", leste para a direita, oeste para a esquerda, Europa no centro e no alto, etc. Além disso, a proporção entre as áreas dos continentes e dos oceanos é mais realista — um mapa para uma visão crítica de mundo e, quem sabe, para a era da exploração espacial. No entanto, a maior parte das pessoas certamente "estranha" essa projeção, ainda muito incomum hoje. Literalmente, a projeção Mercator e a Fuller são duas visões de mundo; nenhuma delas perfeita, e ambas com uma história interessante para contar. (Wikimedia; Justin Kunimune)

Nas artes, isso é óbvio. Sempre destacamos o aspecto “subjetivo” das artes: cada obra de arte, ou um conjunto de obras de arte, são a expressão do que o mundo é segundo o ponto de vista de uma pessoa (artista), de um coletivo de artistas ou movimento artístico.

Mas, quanto às ciências, ainda hoje muita gente acredita que elas são completamente “objetivas”: quando um cientista ou um grupo de cientistas propõe um modo de entender o mundo, esse conhecimento é, em geral, visto como absolutamente inquestionável, pois seria a expressão da “absoluta” verdade, seria uma descoberta feita pelas ciências de um fato, e não uma “criação” da mente de algum artista.

Por outro lado, sabemos que o esforço de criar conhecimento científico é sempre a expressão de uma cultura, de uma época, de um modo específico de ver o mundo — criada por uma subjetividade (uma pessoa) ou conjunto de subjetividades (a sociedade).

Ou seja, toda explicação científica é também uma construção subjetiva, mesmo que tendo sido construída segundo métodos rigorosos e produza efeitos concretos no mundo. Quanto mais gente acredita que aquilo é uma verdade absoluta, mais ela parece ser inquestionável — mesmo que não haja nenhuma verdade absoluta e inquestionável, em nenhuma época ou lugar.

Dois mapas de Paris. À esquerda, o mapa "psico-geográfico" criado por Guy Debord e os Situacionistas, uma obra de arte que criticava o modo "objetivo" de ver as cidades, e convidava à compreensão complexa do meio urbano, a partir de uma perspectiva declaradamente subjetiva. À direita, um mapa turístico de Paris, também um convite à deriva, mas guiada por uma visão pretensamente "objetiva" da cidade (como o território seria "de verdade"). Ambos mapas são objetivos e subjetivos, mas de modos muito diferentes. Arte e Ciência se sobrepõem, e profundamente precisam ser vistas como a mesma empreitada, percebida sob pontos de vistas diferentes. (Guy Debord e Movimento Situacionista; ParisMap360.)

Escolas são máquinas taxonômicas?

Agora, a gente pode ver qual é, provavelmente, o maior problema do sistema tradicional de ensino: a crença de que a abordagem taxonômica “dá conta de tudo”. Creio que é por esse por este motivo que muita gente acredita que as escolas deveriam concentrar seus esforços em “dar aula”, ou seja, apresentar taxonomias aos alunos — em outras palavras, a maior parte das escolas funcionam como “máquinas taxonômicas”.

De fato, ainda hoje, depois de mais de um século de críticas a esse modelo de “transferência de conhecimento”, a maior parte das escolas acredita que a experiência taxonômica é a única que vale a pena.

Ainda acredita-se que “dar aula” nada mais é do que a exposição de um único sistema de entendimento, sempre de modo direto, sintético, resumido, sem qualquer engajamento gradual da percepção e da cognição do aprendiz (nenhuma experiência estética, e quase nenhuma experiência ontológica — quando acontece algo nesse sentido, é por conta dos aprendizes).

Lembram daquelas “aulas chatas” de matemática do ensino médio?

Então, provavelmente você estava à mercê de algum professor que compreendia a dimensão taxonômica (T) do assunto que estava ensinando, mas não tinha disponibilidade ou habilidade para convidar os alunos a compreender esse assunto de modo estético (E) e ontológico (O)…

O que faz uma aula ser chata? Alguns afirmam — como no ótimo texto de Bruno d'Almeida — que mesmo que o trabalho do professor seja ótimo, engajante e estimulante, o problema está no conteúdo intrinsecamente abstrato, e que, no fim das contas, os alunos não têm opção de construir sua própria trajetória de aprendizagem. Por outro lado, eu acredito que é crença cega na abordagem taxonômica do conhecimento que acaba criando não apenas "aulas chatas" e "prisões escolares", e sim um sistema curricular desvinculado da vida concreta do aluno, e também de seus sonhos e aspirações. (Imagem: Bruno D Almeida.)

Creio que esse é o maior e mais importante motivo pelo qual o sistema formal de ensino é um ambiente pouco acolhedor, pouco estimulante, enfadonho, frustrando milhões de alunos, levando-os a abandonar temas complexos mas interessantes, talvez apaixonantes e quem sabe “úteis”.

Segundo o modelo EOTC, podemos considerar que isso acontece porque esses aprendizes foram expostos a esses temas a partir de uma perspectiva exclusivamente taxonômica.

Sem a ativação das dimensões estética e ontológica, o conhecimento taxonômico parece árido, arbitrário, “abstrato demais”, reducionista, levando a uma experiência de educacional desagradável ou mesmo repulsiva, pois é desprovida de sentido, desconectada da minha vida porque está desconectada da minha percepção (estética).

Todo educador que insistiu na perspectiva taxonômica já escutou isso: “professor, para quê serve esse conhecimento? No que aplico isso?”

Mas poderia estar dizendo: “não entendi o sentido desse conhecimento, sua relação com minha vida e com meu cotidiano”.

Logocentrismo, livro-centrismo e conhecimento sistemático

Mas, porque é tão comum cairmos na taxonomia como primeira forma de apropriação do conhecimento?

Bom, depois de mais de 500 anos de imprensa — a primeira e mais importante indústria, o protótipo de todas as outras — é natural que acreditemos que o texto (o logos) seja o centro de todo conhecimento. Os livros nos apresentam, especialmente os científicos e da educação tradicional, um receituário de modelos sintéticos: livros tendem a ser a síntese de um conhecimento, ou seja, expressão da experiência taxonômica da aprendizagem.

Além disso, os triunfos da ciência, das explicações sintéticas, sumarizadas, reducionistas, são numerosos e inegáveis — e o meio principal de sua disseminação foi a publicação de livros.

Mesmo nesse momento: você que lê este texto, está lendo uma “taxonomia”, um modelo sistemático e sintético para compreender-se o processo de aprendizagem. Eu mesmo estou me comunicando com você por meio da experiência taxonômica da aprendizagem. Mesmo que tenha inserido elementos estéticos, ontológicos e cosmológicos neste texto, estamos nos comunicando taxonomicamente.

A síntese reducionista da taxonomia tem seu valor.

Mas quando queremos convidar o aprendiz a um campo de descoberta viva e cheia de autonomia, a taxonomia precisa encontrar o seu lugar em meio a um ambiente de aprendizagem que também é estético, ontológico e cosmológico.

A taxonomia é inevitável, mas ela NÃO precisa ser o ponto inicial ou ponto focal do processo de aprendizagem.

Crítica ao Reducionismo das Ciências versus Negacionismo das Ciências

  • Uma observação importante:

Estou criticando a tendência de apresentar todo conhecimento a partir da perspectiva taxonômica.

Toda síntese é reducionista para que possa estabelecer um ponto de vista claro e explícito. Por outro lado, quando essa síntese está divorciada da complexidade da experiência concreta, ela tende a frustrar a curiosidade do aprendiz. Por isso, eu critico a insistência em basear todo o processo de ensino-aprendizagem na perspectiva taxonômica: ela não basta, sozinha, para criar experiências de aprendizagem bem sucedidas.

Mas, isso não significa que a ciência — mesmo quando reducionista — seja uma “opinião” sobre as coisas, que possa ser descartada em um relativismo desmedido. Estamos vendo hoje, horrorizados, ataques ao conhecimento científico por parte de setores retrógrados da sociedade — terraplanismo, criacionismo, etc. — trata-se de um movimento anti-científico que não tem nada a ver com a discussão que estou fazendo aqui.

O negacionismo contra as ciências é um movimento de obscurantismo e ignorância, não de esclarecimento e aprendizagem.

Afirmar que o conhecimento científico é a “opinião” de alguém — situação assustadora e comum em salas de aula de hoje — não é questionar cientificamente a própria ciência, é negar o próprio processo de produção de conhecimento.

A subjetividade da construção da ciência, sobre a qual falo acima, não é aleatória, desprovida de rigor, coerência e atenção aos fatos observados. Ela é, em seus detalhes e alinhamentos conceituais, a expressão de uma cultura específica, de um momento histórico. Mas, a subjetividade não é, nunca, a “opinião de alguém”: essa é mais uma redução (muito popular) que impede o entendimento crítico do mundo.

E podemos perceber que o negacionismo é, em parte, consequência do uso insistente e exclusivo da abordagem taxonômica do EOTC: sentindo-se cada vez mais alienados do processo de construção de conhecimento, muitos negacionistas encontram nas “explicações mágicas” um apelo sedutor ausente das “explicações áridas” das aulas de ciências — excluídos de um processo rigoroso de produção de conhecimento, preferem crer em modelos equivocados, mas apelativos em seu encanto e simplicidade.

O negacionismo é uma reação política contra as ciências: em uma sociedade carente de conhecimento sobre os métodos de produção científica, os negacionistas são presa fácil para um zoológico de ideias sem pé nem cabeça. É possível que a “escola taxonômica” tenha criado uma sociedade que é um deserto de conhecimento, deixando muitas pessoas sem referência alguma para avaliar a inconsistência de explicações simplórias.

É crucial saber que há um abismo de diferenças entre esse “zoológico de ideias disparatadas” e as múltiplas verdades das experiências estética e cosmológica do conhecimento: o segundo caminho nos convida a ver as ambiguidades do mundo, os paradoxos entre diversas verdades, cada uma delas construída cuidadosamente e rigorosamente.

As experiências estética e cosmológica da aprendizagem.

Para compreender o papel da subjetividade no processo de ensino-aprendizagem, vale mergulhar um pouco mais nas experiências estética e cosmológica. Elas trabalham com outras dimensões da psique que não exclusivamente o entendimento racional, linear e linguístico dos conceitos.

A experiência estética do conhecimento engaja o corpo do aprendiz: sua presença, sua postura, as sensações do corpo, como ele se acopla ao ambiente, o confronto de experiências anteriores e o que está vivendo agora. A imersão sensorial em um ambiente cheio de estímulos: percepção auditiva, visual, olfativa, tátil, do paladar, proprioceptiva, equilíbrio, movimento, velocidade, vertigem, excitação, etc.

A experiência cosmológica do conhecimento envolve sínteses complexas, ambíguas e/ou paradoxais do conhecimento, acolhendo as diversas perspectivas de cada ponto de vista taxonômico em uma visão plural que é capaz de oscilar entre modos diferentes de entender as coisas, sempre amparada pela sensibilidade e intuição do aprendiz (ou mestre).

Além disso, na experiência cosmológica, o corpo “está de volta” pois é um aspecto fundamental da percepção e, por isso, do conhecimento.

Em síntese, é possível ver a abordagem estética da aprendizagem como uma criança que brinca, de modo a-crítico, muito entregue à imersão sensorial no ambiente.

Do mesmo modo, é possível ver a abordagem cosmológica como uma anciã, que observa o mundo com suas contradições, ambiguidades e paradoxos, e é capaz de aceitá-las de modo maduro e tranquilo, compreendendo que os aspectos estritamente racionais do conhecimento são uma abordagem que pode conviver com os aspectos estéticos, emocionais e sensoriais que o mundo nos apresenta.

Mas, o que fazer quando o tema é essencialmente abstrato como a matemática, a geopolítica, a economia ou a astronomia, por exemplo?

Há diversos caminhos para lidar-se com conteúdos “abstratos e complexos” começando-se com a estética. Um deles é engajar a memória da aprendiz a respeito de aspectos de sua vida concreta que têm relação com o tema.

Por exemplo, na economia, podemos convidar o aprendiz a expressar sua percepção das condições econômicas de sua vida pessoal ou familiar. Na geopolítica, ele pode contar como vê o mundo, as relações políticas e culturais entre os países. Na astronomia, podemos explorar a sensação de olhar para o céu, para o sol, a lua e as estrelas. Na matemática, podemos convidar os aprendizes a compartilhar como fazem para controlar suas finanças ou como controlam quantos itens de alimento, material de limpeza ou de vestuário foram comprados ou utilizados em casa. A partir desse alicerce de contato concreto com o mundo, mesmo que inicial e pouco desenvolvido, podemos construir mais camadas conceituais, cada vez mais abstratas.

Em resumo, podemos invocar a curiosidade do aprendiz por meio da sua implicação no processo de aprendizagem, demonstrando que o conhecimento, por mais abstrato que seja, tem relações com o mundo concreto, com nossa vida cotidiana.

Essa abordagem — convidar o aluno a trazer elementos de sua vida concreta para a sala de aula — é amplamente conhecida, e é uma das bases do trabalho do grande educador Paulo Freire, além de estar presente em outras vertentes, desde a Antroposofia, passando pelas escolas construtivistas (Piaget), e nas propostas de educadores tão variados como Fröbel e Montessori.

Ao meu ver, o ponto mais importante é saber que o aprendiz está, inevitavelmente, imerso em um “Ecossistema de Aprendizagem”.

No próximo texto da série Metadesign e Meta-aprendizagem, falarei sobre o “Ecossistema de Aprendizagem”, como ele funciona, como podemos desenhá-lo (a parte que nos cabe), e como participar e tirar proveito daquilo que já está no ecossistemas existentes por meio do desenho de experiências de ensino-aprendizagem.

— — — — — — — —

Para uma introdução rápida ao metadesign, recomendo o texto “Metadesign, Jogos e Transformação Cultural”, no qual proponho que a realidade cotidiana pode ser vista como um “jogo/brincadeira” maleável, disponível à criação coletiva. Esse jogo-brincadeira — a realidade em que vivemos — é algo que a gente aprende. A aprendizagem é fundamental para a transformação social, para a inovação, para criar laços comunitários e para a cidadania.

Quem quiser saber mais sobre a minha versão do Metadesign, há o livro “Metadesign: ferramentas, estratégias e ética para a complexidade”, disponível pela Editora Blucher.

--

--

Caio Vassão

Caio Vassão é arquiteto e urbanista, trabalha com as complexas relações entre inovação, cidades, tecnologia, comunidades e transformação cultural..