Serendipidade Social e o Futuro das Cidades.

Caio Vassão
7 min readFeb 4, 2021

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Uma vida urbana variada, rica. Cheia de encontros fortuitos, vivida enquanto andamos de lá pra cá em nossas atividades nesse formigueiro humano das grandes metrópoles.

Isso se perdeu na pandemia, e é um dos aspectos mais ricos da vida cosmopolita.

Praça Roosevelt vazia. (Imagem: Sérgio Souza.)

A gente pode definir a "serendipidade social" como o conjunto de encontros fortuitos que nos sugerem outras visões de sociedade, que engrandecem nossa percepção de mundo, mudam a percepção que temos de nós mesmos e do que julgamos ser possível na vida em sociedade.

Sem essa dimensão rica de nossas vidas, não estamos de fato vivendo em sociedade, especialmente não estamos vivendo em cidades.

Durante o isolamento social ao qual a pandemia nos arremessou, estamos vivendo segundo um campo de relações sociais que é norteado não pelo Encontro, e sim pelo Plano: falamos com pessoas com as quais planejamos nos encontrar.

Hoje, não é possível viver essa serendipidade social porque não é mais possível encontrar com pessoas com as quais não podemos planejar um encontro — não podemos planejar esse encontro porque não as conhecemos, e se conhecemos não sabemos qual seria o motivo objetivo para ter esse encontro. Só "encontramos" pessoas (via zoom, facetime, teams, meets, whatsapp) porque já as conhecemos, e podemos imaginar um motivo para conversar (nem que seja para "matar as saudades") e podemos organizar de modo muito bem regrado esse encontro (equipamento, conectividade, lugar em que o ruído ambiente permita compreender o sinal acústico do dispositivo que estamos usando na "teleconferência").

Perdemos uma das dimensões mais ricas da vida nas sociedades cosmopolitas modernas: o flaneur. Dentre as habilidades desdobradas dessa figura semi-ficcional do fim do século XIX, está a possibilidade de sair de casa com um intuito, e ser confrontado com uma situação completamente inusitada, no mesmo que de caráter leve e sutil, que exige de nós uma interpretação ou entendimento, e que ajusta ou altera irreversivelmente nosso caminho mental daquele dia.

Em plena pandemia, mesmo as pessoas que estão nas ruas — por vontade própria irresponsável, ou por falta de opção de sobrevivência financeira — não podem viver o flaneur: não há complexidade social viva, espontânea, emergente e complexa o suficiente nas ruas para criar essa atmosfera de oportunidades imprevistas.

Por um lado, isso é um pesadelo: de modo muito concreto, a sociedade está “à espera”, com uma dimensão crucial da vida urbana cosmopolita em suspenso, o que impede que muito da riqueza (financeira, cultural e afetiva) seja criada.

Por outro lado, é um alerta para repensar nossa vida urbana: lembrando bem, quantos eram os lugares que frequentávamos antes da pandemia que, de fato, propiciavam esse tipo de vida urbana complexa, rica, cheia de oportunidades de interação social no burburinho dos encontros fortuitos?

Na verdade, não havia muitos desses lugares.

Mesmo em uma macrometrópole, como São Paulo, há poucos lugares e regiões que promovem essa dimensão crucial da vida urbana…

Se, e quando, retomarmos a vida social intensa dos encontros face a face, dos trajetos diários de idas e vindas para o trabalho, para casa, comércio, esporte, etc., seria interessante ponderar sobre o quanto, de fato, essa vida da presencialidade nos dava oportunidades para desfrutar desses encontros fortuitos…

Quando retomarmos a vida do corpo a corpo, na massa social viva, que essa vida faça sentido de fato, e não seja um fluxo disciplinado e dopado de hordas de pessoas seguindo seus caminhos, ignorando todas as outras, exatamente porque não poderiam dar atenção para esses outros caminhos de vida com os quais cruzam em suas andanças.

Que cidade desejamos? Que tipo de vida urbana queremos?

A vida que vivíamos nas grandes cidades, antes da pandemia, era de fato rica e complexa? Ela nos nutria com oportunidades de criar desvios criativos?

Há duas componentes desse questionamento:

1 — Como as cidades propiciam essa serendipidade social?

2 —Como lidar com o fato de que as pessoas, na vasta maioria das populações urbanas, não tem tempo, disponibilidade e condições de explorar essa riqueza que a vida urbana cosmopolita nos propicia?

A primeira questão é, parcialmente, uma atribuição do urbanismo. Mas também é uma qualidade do meio urbano que deve emergir das complexas relações que fundam e desenvolvem as cidades.

Objetivamente, podemos fazer algo quanto a isso, mas só até certo ponto.

Para que tenhamos uma vida urbana interessante e que valha a pena ser vivida no adensamento das cidades contemporâneas, é necessário que o planejamento urbano e a gestão das cidades reconheça a importância de propiciar que as comunidades que habitam as cidades possam definir com poder e autonomia a “cara” que a cidade tem.

Isso ainda é um desafio, do ponto de vista do planejamento urbano como feito pelos órgãos públicos e pelo capital imobiliário: o cógito urbano que cria a maior parte de tecido sócio-espacial das cidades é aquele que se julga o demiurgo que irá criar as condições de vida urbana em quase sua totalidade — o sonho do “projeto total” modernista ainda continua vivo em nós porque ainda somos positivistas de coração, ainda não aprendemos a habitar o pensamento que acolhe a complexidade não apenas como um dado, mas como a sede da vida (qualquer vida, incluindo a vida urbana): a cidade é um fenômeno complexo e emergente, que pode apenas ser parcialmente projetado.

A segunda questão tem a ver com macro-economia e geopolítica: até quando obrigaremos a vasta maioria da população trabalhar em atividades que não fazem qualquer sentido? Não fazem sentido porque podem ser (e já podiam faz tempo) ser automatizadas e não propiciam qualquer forma de realização pessoal além do salário.

Estamos entrando em alta velocidade no setor quaternário da economia, a economia criativa e do conhecimento. Essa é uma economia que exige a produção constante e intensa de novos conceitos, novos modos de vida, novos negócios, nova política, nova governança. A vida urbana, em sua intensa e nervosa interação social, é o ambiente em que essa riqueza é produzida. E ela envolverá a maior parte da população, não será uma ocupação “de nicho”, como muitos acreditam.

Progressão histórica do arranjo sócio-econômico da sociedade. Estamos entrando aceleradamente em um novo momento histórico. As cidades precisam refletir isso. Além de "ajustes" no meio urbano, é provável que uma transformação radical aconteça nas cidades, envolvendo uma sobreposição complexa e rica entre serendipidade social e telepresença, duas forças fundamentais para o setor quaternário. Mais sobre esse tema nesse outro artigo (Imagem: Bootstrap/Caio Vassão).

A pandemia não retardou esse movimento de expansão do setor quaternário, só o acelerou.

Isso quer dizer que as cidades passarão por dois movimentos. Um deles é inevitável, e mudará completamente a configuração do tecido urbano: a telepresença, baseada na telecomunicação barata, acessível e disseminada à totalidade da população — o delírio de ficção científica virou fato, e está sendo vivido antes de ter sido planejado. E um segundo movimento que dependerá de um comprometimento com o bem-estar social, aspecto flagrantemente ausente do planejamento social das últimas décadas — é necessário empreender um amplo processo de aprendizagem social por meio do qual as populações urbanas serão convidadas a adentrar outras formas de produção de riqueza individual e coletiva.

O primeiro movimento questionará os critérios de planejamento urbano em suas bases mais longínquas, questionando nossa própria noção de interação social e como ela se manifesta no espaço — e será um movimento, pelo menos em curto prazo, contrário àquela serendipidade social sobre a qual estou falando. Mesmo assim, podemos dialogar com esse movimento inevitável, procurando por métodos mais interessantes de transformar o ambiente urbano que vão além de um “green field bem feito” — para usar um termo dos negócios imobiliários — e possamos criar tecidos urbanos que tanto acolham a telepresença como também a intensa ocupação das ruas.

Eu propus o modelo urbano da Cidade Distribuída há quase duas décadas, falando em boa parte aos “ouvidos surdos” dos colegas urbanistas. Quem sabe isso mudará com esse estágio forçado na "terra de telecomunicação" que a pandemia nos arremessou?

Rede de conceitos relacionados à “Cidade Distribuída”. Nos últimos dois séculos, a cidade evoluiu muito rapidamente, e vemos a emergência de novos condicionantes para a articulação do ambiente urbano. Essa articulação sempre envolverá uma sobreposição entre demandas sócio-ambientais e os modos por meio dos quais interagimos socialmente nas cidades — com especial atenção para a emergência das cidades a partir das relações comunitárias e colaborativas. (Imagem: Caio Vassão/Bootstrap.)

O segundo movimento precisa de um empenho considerável de um espectro amplo da sociedade para que não seja a iminente conversão da sociedade em um enorme “precariado intelectual”, promessa completamente plausível frente aos desenvolvimentos recentes em inteligência artificial e na criação de oportunidades de emprego para o setor quaternário segundo a lógica da “gig economy” — para um exemplo, veja o "Amazon Mechanical Turk".

É necessário um pacto global no sentido da criação de oportunidades de aprendizagem para as competências desse novo momento sócio- econômico. Como já se diz por aí, “é necessário que o filho do motorista seja programador!” Que tal pensar em convidar ao, e viabilizar o, trajeto do motorista para que ele mesmo se torne programador? (Ou outro par de ocupações típicas que exemplifiquem a passagem da atuação profissional de uma pessoa do setor terciário para o setor quaternário…)

No jogo entre o planejado e o emergente, seria muito importante que quem tem o “poder da caneta” aceite em seus pensamentos o espírito daquele flaneur parisiense que prenunciou a necessidade do complexo na vida urbana, e compreenda que convidar a complexidade para a vida social das cidades é crucial para nosso futuro.

Um jeito de fazer isso é procurar apoiar e também participar de processos de urbanismo colaborativo: dialogar com ecossistema urbano é algo que devemos fazer por meio da inteligência coletiva — o especialista precisa estar imerso em uma mente maior que a sua, e assim ser capaz de escutar novas possibilidades.

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Caio Vassão

Caio Vassão é arquiteto e urbanista, trabalha com as complexas relações entre inovação, cidades, tecnologia, comunidades e transformação cultural..