Uma metáfora para a crise ecológica.

Caio Vassão
6 min readDec 6, 2021

--

Quem sabe, um pouco de ironia pode ilustrar melhor nossa situação?

Uma família, em um carro, de noite, em uma estrada deserta. O pai dirigindo, pé no acelerador, a toda velocidade.

A sua esposa vê, adiante, um precipício. E berra:

“Freia o carro!!”

Ele responde: “querida, não é assim que a vida funciona. Vou dizer o que eu posso fazer: vou reduzir a velocidade gradualmente; em 20 minutos, a gente vai estar em uma velocidade bem mais baixa. Ok?”

A esposa retruca: “freia agora!!”

O marido diz: “nossa, você é muito chata! Não entende que eu não posso simplesmente frear?! As coisas não funcionam assim… o que dá pra fazer, tendo em vista que meu pé gosta muito do acelerador, é apertar um pouco menos forte. Vamos seguir esse plano de redução de pressão. Não posso simplesmente frear! Isso não é realista! (Você sonha demais…)”

Nessa hora, o carro está tão perto do precipício, que as crianças — no banco de trás — já estão percebendo o desastre iminente…

“Pai! Freia o carro agora!!”

O pai: “crianças mal educadas!! Não sabem respeitar seu pai! Eu é que sei o que é melhor para a família!” E olhando para a mulher: “é assim que você as educa? Enfiando ideias sem sentido nas cabecinhas delas…”

Estamos num carro em alta velocidade, a beira de um abismo. Quem dirige o carro não enxerga isso e não age de acordo. Agarrado aos próprios hábitos, diz que as coisas simplesmente não podem mudar de uma hora para outra…

O movimento ambientalista e a ciência (na metáfora, a esposa) já perceberam o desastre iminente, mas não têm poder político e econômico para mudar diretamente o destino da sociedade (o carro) — suas percepções e alertas não são levadas a sério o suficiente pelas lideranças globais (o marido). O marido afirma que a posição da esposa “não sé realista” porque não é compatível com sua percepção das coisas.

Mas, agora, estamos tão perto do colapso ecossistêmico (o precipício), que até mesmo as novas gerações (as crianças) estão vendo o absurdo da situação. E fazem coro com a mãe: temos que rever o destino da sociedade! (“freia o carro!”)

Essa metáfora é uma ilustração do que chamo “ilusão da experiência”: a crença de que o futuro é apenas uma continuação do passado — quaisquer mudanças (caso ocorram) serão graduais. Portanto, sempre podemos nos ajustar gradualmente a elas.

A ilusão da experiência é baseada na crença da continuidade: acredita-se cegamente que mudanças aceleradas ou catastróficas não são só improváveis, mas impossíveis! Frente às crises, essa crença torna quase impossível que haja empenho nas necessárias transformações sociais, econômicas e culturais de grande escala.

Quem sofre da “ilusão da experiência” acredita que nunca precisa mudar de opinião, e não está disponível para aprender coisas novas com pessoas que considera menos preparadas, “que não sabem o que eu sei” — visões de mundo diversas são desprezadas porque não são espelho da própria experiência.

Recentemente, vimos uma situação em que a ilusão da experiência pode ser desastrosa (vejamos um exemplo menos assustador do que a crise ecológica):

A revolução digital levou uma infinidade de empresas à falência, incluindo aquelas que lideravam o setor: como não conseguiram acreditar que as mudanças sociais impulsionadas pela computação exigiam transformações profundas (o crescimento vertiginoso do consumo de eletrônicos, a adoção maciça de computadores na vida cotidiana), essas empresas não fizeram nada para acompanhar essa mudança social, econômica e cultural.

Em sua maior parte, essas empresas ficaram obsoletas. As que sobreviveram são, hoje, no máximo coadjuvantes de terceiro nível em um mercado liderado por empresas mais novas.

Quando aquelas antigas empresas de computação estavam “dirigindo o carro“, as atuais líderes eram “crianças no banco de trás”.

Mas, o nosso assunto é bem mais sério: todos temos a perder quando não percebemos que estamos destruindo o ecossistema planetário. Grande parte das pessoas, incluindo as lideranças globais, continua a acreditar que não há urgência alguma em nossa situação.

Assim, simplesmente não conseguimos “frear o carro”, “tirar o pé do acelerador”: a maior parte das ações frente à crise ecológica é de mitigação de impacto, não de transformação radical das matrizes tecnológicas e a criação estruturada de novos padrões de consumo.

Ainda mais, também em sua maioria, os planos de redução de impacto propõem horizontes de tempo distantes demais, com exemplos como: redução de 80% da emissão de gás carbônico em 30 anos — ou outros tempos e cronogramas incompatíveis com a urgência da situação.

São respostas baseadas na crença de que “não pode ser tão grave…”, “nunca nada mudou tão rápido!”, “não precisamos responder tão rápido”, “ainda temos bastante tempo”…

Não temos referência histórica quanto a uma ameaça tão grave à nossa existência. No passado, nunca fomos simplesmente obrigados a “pisar no freio”.

Todos nossos modelos de sustentabilidade econômica, organizacional e social são baseados em aceleração e crescimento!

Fala-se tanto de “exponencialidade”, mas pouca gente sabe que a crise ecológica também é exponencial: isso quer dizer que, quando o perigo de nossa situação ficar óbvio, será tarde demais.

Mesmo que os líderes globais conheçam a ciência que expõe o desastre iminente (a esposa berrando “freia o carro!”), consideram que estão fazendo “o máximo que podem”, não se comprometem com a necessárias transformações para evitar o colapso ecossistêmico.

Estamos na era da mitigação, da redução do impacto. Mas precisamos entrar imediatamente na era da transformação estrutural.

Ainda usando a metáfora, precisamos, sim, uma redução de velocidade (tirar o pé do freio)– mas, em seguida, precisamos de uma mudança de direção (mudar a trajetória do carro para longe do abismo).

Antes que seja tarde demais, e sequer seja possível a mudança de trajetória: estaremos tão perto do abismo, que a freada, seguida de uma tentativa de mudança de rota, resultará apenas uma capotagem, arremessando o carro no abismo, rodopiando no ar.

O que fazer?

Podemos ter ações de mitigação de impacto em curto prazo — mesmo que insuficiente, a aplicação das técnicas de sustentabilidade e da continuidade podem reduzir a velocidade da destruição, e nos preparar para a mudança mais profunda.

Mas, em seguida (futuro imediato), precisamos de técnicas de transformação estrutural da sociedade, a criação, desenvolvimento e promoção de novas matrizes tecnológicas e de consumo — a aplicação das técnicas de regeneração, da transformação radical (“na raiz”), da ruptura com velhos hábitos e a criação de novas práticas de regeneração do meio ambiente e da sociedade.

Voltando à metáfora, com ajuda do Metadesign:

Talvez ajustando a metáfora, podemos perceber o ponto mais importante: imagine que estamos dirigindo um carro, de noite, numa estrada deserta, no meio do mato, de óculos escuros. Não é de admirar que muita gente não veja nenhum perigo maior — não veem quase nada!… Parece que as lideranças globais vêem as coisas como esse marido que dirige o carro usando óculos escuros: o abismo é só um solavanco, nada mais grave.

A aplicação do Metadesign para a transformação regenerativa é o convite à transformação de mentalidade: tirar os óculos escuros para revelar a escala do problema, ver melhor o terreno e assim podermos escolher uma rota que não leve ao colapso da sociedade e do ecossistema.

Olhar para dentro, rever as próprias crenças, ver o mundo de um outro jeito: assumir um ponto de vista mais sensível às necessidades do ecossistema e da sociedade.

--

--

Caio Vassão

Caio Vassão é arquiteto e urbanista, trabalha com as complexas relações entre inovação, cidades, tecnologia, comunidades e transformação cultural..